O que voltou à cena política não foi um Brasil qualquer, mas o Brasil classista, o povo brasileiro.
3 de jan. de 2023
O sentindo original do termo condensação está relacionado ao processo físico através do qual a matéria passa do estado gasoso para o estado líquido. Trata-se de uma aglutinação de moléculas. Consiste no inverso da vaporização. Em um dos sentidos comuns tomamos emprestado o termo para descrever algum processo que sintetiza outros processos. Um fato que aglutine mais de um sentido relevante, um fato adensado.
Pois assim se pode observar e interpretar o conjunto da posse do presidente Lula neste primeiro dia do ano. Um episódio que condensou o passado recente da política brasileira, adensado de inúmeras expectativas e interpretações do que poderá ou deverá ser a política daqui para frente. História e memória vão interagindo de forma a completar as lacunas da explicação e de sua narração, construindo pontes para formar a legitimidade que tanto envolve o presidente Lula.
O lento caminhar de pessoas comuns e um cachorro vira-lata, rampa acima, em direção ao Palácio do Planalto é a cena. Mais do que a entrega da própria faixa presidencial constitui uma explicação que preenche a história interrompida e permite uma narração sobre ela. Aqueles grupos sociais, representados naquelas pessoas, somente subiram a rampa neste dia 1º porque foram retiradas de dentro do Palácio do Planalto anos atrás, por um processo de luta política e não por justiça. Como se a história pudesse fazer justiça. No entanto não pode fazer, não faz e não fará.
Ao invés de justiça, a cena expressa a vitória política de uma trajetória que, precisávamos todos, deveria ser reatada. O que voltou à cena política, mundial e local, não foi o Brasil ou um Brasil qualquer, etéreo e homogêneo. Voltou à cena o Brasil classista, o povo brasileiro. Aqueles que se pode chamar dos lascados e ofendidos, os que desde o golpe institucional no governo Dilma haviam sido retirados das posições de poder político conquistado nos anos anteriores de governos populares.
Tão fortes quanto a presença dos protagonistas simbólicos na construção dessa narrativa histórica, foram as ausências objetivas. A fuga de Bolsonaro horas antes – fuga sem tergiversações – funciona e funcionará em nossa memória como uma espécie de evidência, ou prova, daquilo que os ofendidos e vitimizados de 2016 sofreram ilegitimamente. Esta ausência permite uma cena histórica não compartilhada com aqueles sujeitos políticos que tanto retiraram direitos e cidadania exatamente dos que subiram a rampa.
A narrativa histórica, condensada em todo o fato de grande densidade simbólica ocorrido neste dia 1º é, antes de mais nada, uma exigência. Ao contar a história, se projetam as expectativas sobre o governo Lula daqueles sujeitos ali representados. Mas para construir essa narrativa histórica precisávamos ter vencido a supremacia da intolerância e do autoritarismo, vencido a regressão dos direitos e o eugenismo da política de extrema-direita dominante até então.
Esta narrativa histórica é simultaneamente legitimação e projeção. Contar o passado passa a ser, na luta pelo poder político, projeção de futuro. O programa a ser efetivado por Lula deverá ser inverso ao do passado rejeitado neste dia condensado. A expansão dos direitos fundamentais, a consolidação da democracia, o relacionamento e interação no plano da política internacional, entre tantos desafios, são os conteúdos que voltaram à pauta do governo brasileiro.
Mas é preciso registrar: a história não termina, a história continua. Nada é em verdade descartado ou eliminado, mas superado e processado. As condições que levaram a extrema-direita ao governo, à eliminação de direitos, e a própria extrema-direita não desapareceram. Se apresentarão, explicitamente ou não, em cada reunião entre as várias opções que se apresentarão para decisão do novo governo.
A memória, portanto, será a grande força para que a história não se repita.