A mais efetiva defesa da democracia é a consolidação de uma cultura democrática na sociedade.
19 de jan. de 2023
A “minuta do golpe”, documento que desenhava a implantação de um Estado de defesa – uma das formas do Estado de exceção previstas na Constituição Federal – tinha como sentido criar as condições normativas para um golpe de Estado. O documento foi encontrado na casa do ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, Anderson Torres, em uma ação de busca e apreensão de documentos e evidências, levada a cabo pela Polícia Federal por determinação do Supremo Tribunal Federal.
O objetivo era intervir no TSE para forjar uma situação que permitisse invalidar os resultados da eleição presidencial e impedir a posse do presidente eleito, e agora empossado, Lula da Silva. É a isso que chamamos de golpe de Estado. Uma ruptura com o sistema legal que molda a democracia no Brasil de forma a inverter a decisão soberana do voto popular.
A despeito da realidade fática de uma ação de força das Forças Armadas, o golpe de Estado de 1964 se “normalizou” quando o Senado Federal – chancelado pelo STF – declarou vaga a Presidência da República, estando o presidente João Goulart no país e com todas as condições e legitimidade para governar. Os militares golpistas de 64 buscaram a cobertura das regras legais para consolidar a ruptura democrática.
Os atuais golpistas também buscaram “operar” a Constituição e o sistema legal em favor de sua intentona. Sem sucesso até o momento, diga-se a bem da verdade. Bolsonaro, diferente dos golpistas de 64, não reuniu condições suficientes para dar o golpe. Ressalto eu, porém, que insuficientes não quer dizer inexistentes.
Bolsonaro lançou mão de várias estratégias anti-institucionais e ilegais para vencer as eleições: uso da máquina do Estado, notícias falsas, violência política. Assim como tentou valer-se de estratégias “normalizadas” pela política e pelo senso comum como o uso da religiosidade. Também tentou valer-se de medidas legais mal definidas, como a tentativa de decretação do Estado de defesa demonstrou.
Buscar se utilizar da Constituição democrática do Brasil contra a própria democracia brasileira é um alerta para uma transição inconclusa. A Constituição brasileira não prevê de forma cabal mecanismos para impedir que seus instrumentos sejam utilizados contra si própria em sua contraposição. Os dispositivos constitucionais que Bolsonaro tentou utilizar foram pensados para autodefesa da democracia brasileira e não para derrubá-la. O Estado de defesa está previsto no capítulo que tem por título "Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas".
Estados como o alemão e o português desenvolveram mecanismos fortes de proteção democrática e de todos os seus fundamentos em decorrência dos graves sofrimentos causados pelas crises profundas que cada país sofreu. No Brasil, ao contrário, muito possivelmente em consequência de uma transição para a democracia branda e claudicante, onde os crimes de golpe não foram devidamente tipificados, os instrumentos de autodefesa da democracia são brandos. Permitindo até seu uso pelo seu algoz.
O governo Lula tem as condições políticas suficientes para enfrentar esta fragilidade da democracia brasileira. O mundo, a maioria da sociedade, grande parte do sistema de justiça, grandes veículos de comunicação, a maioria dos Estados estrangeiros e os movimentos sociais globais tendem a apoiar alguma consolidação de um novo e mais eficiente sistema legal de defesa da democracia. Esta política deve ser colocada ao lado de outras, como a retomada do crescimento econômico, preservação ambiental e combate à fome, como políticas essenciais para que a direita reacionária e suas tentativas golpistas sejam definitivamente derrotadas.
Na imprensa circulam cogitações de que o governo Lula já pensa em tais medidas como recuperar todas as prerrogativas e instrumentos previstos na versão original da Lei dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito; mutilada pelos vetos de Jair Bolsonaro no claro intuito de proteger os atos e os golpistas. O governo cogitaria ainda um novo código penal específico para crimes contra a democracia e uma força de segurança específica para proteção dos poderes da República e representações estrangeiras. Todas medidas alvissareiras. Mas é preciso também abrir essa discussão com a sociedade.
A mais efetiva defesa da democracia é a consolidação de uma cultura democrática na sociedade. O que deve ser feito com a repressão às notícias falsas, com o combate ao negacionismo histórico, com a restauração dos trabalhos da Comissão da Verdade, com participação da sociedade na formulação e controle das políticas públicas e do gasto público. Precisamos lutar por uma reforma democrática do Estado brasileiro e por uma cultura cívica democrática.