Tanto falamos sobre a defesa da democracia, mas será possível conquistá-la em uma sociedade com baixo nível de escolaridade? Penso que não! Nós, pessoas negras, herdeiras de toda sorte ou azar a que foram submetidos nossos ancestrais na chamada Idade Moderna com sua economia mercantilista¹ , ainda estamos excluídos da chamada condição cidadã conforme nossa Constituição. Mas nossa Constituição já em suas primeiras linhas descreve a sociedade como republicana e, escancara a necessidade de ações em defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.
Antes de dar sequência à construção analítica, preciso solicitar que você leitor(a) faça um exercício de alteridade pela qual fará a interpretação destas palavras o mais próximo do que as projetei. Sou um homem negro nascido no início dos anos sessenta do ventre de uma mulher negra, que assim como muitas outras mulheres negras, teve que garantir sozinha o sustento de seus filhos. Por esta razão, morávamos num dos muitos becos da capital gaúcha, longe de qualquer política pública. Foi nesta condição que desde a tenra infância fui alijado das condições de cidadania. Não tive a figura paterna em casa, aliás, não tive casa, morávamos em um casebre. Caminhávamos para tudo. Para ir à creche, ao posto de saúde, a escola, ao ponto de ônibus que nos permitiria chegar a outras necessidades básicas de qualquer ser humano. Percebam, leitores, que até o momento me esforço para tentar colocar seu ponto de vista o mais próximo do meu lugar de fala.
Antes dos dez anos eu e meu irmão já éramos vendedores de picolé. Outra forma de ganhar um “dinheirinho” que contribuía com as despesas familiares era transportar, com um carrinho artesanal, as compras pesadas realizadas nas feiras semanais aos sábados pela manhã, claro no bairro distante de nossa morada. Na adolescência, dividi com as responsabilidades escolares, a atividade de jornaleiro e mais tarde, aos quinze anos, consegui trabalho, sem registro em carteira, em uma fábrica de móveis.
De outubro de 1978 até os dias atuais, só tive a possibilidade de ser com dedicação exclusiva, um estudante, o período de dois anos quando recebi Bolsa de Estudos, durante o Mestrado em Educação na UFRGS (2010-2012). Sim, eu fiz mestrado. Apesar de todas as dificuldades e obstáculos à conclusão dos estudos básicos². Me graduei em história, com financiamento do FIES e concluí o Mestrado em 2012, com o suporte de políticas públicas.
Mas então, voltemos ao tema título desta reflexão: qual o papel da educação na democracia? Em minha percepção, não há e nem haverá democracia em uma sociedade em que a educação seja mercadoria inacessível a maioria de seus componentes. Não há e nem haverá democracia, numa sociedade que foi construída, tendo base econômica, a coisificação de pessoas, como no caso de milhões de pessoas capturadas, transportadas e escravizadas, distantes de sua terra natal.
Não podemos “tapar o sol com a peneira”. Precisamos focar nossas lentes para os feitos que consolidaram o imaginário instituído sobre a formação da “nossa” sociedade. Reconhecer que as pessoas negras / afrodescendentes são portadoras de direitos é a tarefa fundamental para a construção da Democracia e do Estado Democrático de Direito.
De todos os direitos de cidadania, me parece que a educação seja, e é o mais fundamental, pois nos possibilita a compreensão dos caminhos para acessar os demais. Mas nunca alcançaremos a Democracia enquanto tratarmos a educação como mercadoria com a qual pessoas possam obter lucro num sistema econômico que se alimenta da ignorância da classe trabalhadora.
Vamos romper com o mercantilismo colonial da Idade Moderna! Vamos romper com qualquer modelo que nos mantenha na condição de humanidade detritária, descrita por Darcy Ribeiro³. Buscar uma vida em comum, não é crime. Sobre isto escrevem Axel Ronneth, em sua obra Luta por Reconhecimento e, Tzvetan Todorov, com a obra Vida em Comum. Textos que serviram de base à dissertação: (Re)conhecimento e Negritude: uma questão da Educação (UFRGS/2012).
Penso também ser relevante citar uma carta que escrevi nos idos de 2007, com o título, Estudar: direito, obrigação ou privilégio e, que foi publicada em 2010 no livro Cartas educativas4, na qual abordei as angústias de quem como eu tinha o desejo de estudar, mas não possuía as condições para tal. Direcionei a escrita como uma provocação ao Ministro da Educação como instituição com a responsabilidade de responder.
Tive a oportunidade de entregar esta carta a uma pessoa que ocupava este importante cargo da república brasileira e ao governador do Estado do RS. Nunca obtive, de forma direta, nenhuma resposta. Razão pela qual minha indagação se mantém atual. Cabe a nós que nos unimos na defesa da Democracia e do Estado Democrático e de Direito ampliar este grito em defesa da educação como via de consolidação da democracia.
*Mestre em Educação. Professor Educação Básica / Lajeado.
Email: contato.gilsonanjos@gmail.com
¹Este fenômeno que demanda especial atenção no que se refere a desgraça a qual foi, e continua sendo submetida, a população negra e afrodescendente, desde a prática da escravidão até os dias atuais.
²Iniciei quatro vezes os estudos de ensino médio. Que só foram concluídos já na fase adulta.
³O Povo Brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. Ribeiro, Darcy, São Paulo. Companhia das Letras,1995.
³Cartas Educativas: uma experienciação de resistências, anúncios e fazeres. Organizado por Carmen Lucia Bezerra machado, Ana Lúcia Gonçalves Marcelino e Marner Lopes da Silveira (Porto Alegre, Itapuy, 2010).