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ARTIGO: "Por que o Estado deve ser independente da religião?"

(art. 19, I da constituição brasileira, dentre outros)

Leonardo Tricot Saldanha*

27 de abr. de 2023

A separação entre Estado e a religião é um dos primeiros pilares erguidos pela teoria do estado constitucional contemporâneo. Sua plena implementação em nosso país é difícil e, mesmo, questionada. Crescemos ouvindo que Deus é puro amor, pura bondade; que devemos adorá-lo e seguir seus passos para viver uma vida boa e significativa. Por que afastar essa bondade toda das escolas, dos hospitais, dos tribunais e das leis? Há quem afirme, até, que é a falta de Deus está na origem dos problemas políticos nacionais.


A grande maioria dos brasileiros tem uma crença. E jamais será o meu objetivo neste texto diminuir a importância da religião na vida de cada um. Para muitos de nós é a religião que abre a noção de solidariedade, de pensar além da nossa casa, da nossa família... sem falar em nos dar consolo na hora da morte, o momento humano por excelência. Viver pode ser bem mais bonito, simples e significativo para aquele que crê em algo maior e que dê sentido ao mundo, isso não se nega. Ainda assim... isso seria suficiente para que o governo de um país democrático adotasse normas religiosas como se fossem obrigatórias? E se a maioria do povo assim desejar?


O estado democrático de direito, como adotado pela constituição brasileira, diz que não. Ele entende que há comportamentos que estão no âmbito privado de cada indivíduo e que devem ser protegidos contra os outros indivíduos e contra o Estado – e a prática da religião é um desses comportamentos. Cada um de nós é livre para adotar a religião que quiser, e os cultos são protegidos. O Estado, porém, é o espaço comum a todos. Deve adotar uma neutralidade religiosa a mais perfeita possível para que todos possam conviver e colaborar para a construção de uma sociedade que realize os objetivos previstos na constituição (os chamados objetivos de justiça política). É certo que cada um de nós tem uma ideia de justiça mais abrangente do que a política. Mas é exatamente para que essas ideias mais largas possam conviver é que uma religião não pode se impor sobre as outras.


“Mas nem se a maioria do povo quiser assim? A democracia não é a vontade da maioria?” Eis uma questão espinhosa. Mas a existência de uma sociedade plural, como defende a constituição, depende do respeito às minorias. Se, por um lado, as maiorias podem eleger presidente e legisladores, por outro elas não podem desrespeitar o direito que cada indivíduo tem de viver em um estado religiosamente neutro. Em uma democracia moderna, a maioria não pode esmagar os direitos fundamentais da minoria.


A aplicação dessas ideias é bem difícil. O Brasil é um país extremamente religioso e em que uma neutralidade plena é um objetivo distante. Mas há coisas claras: nas escolas, mesmo nas confessionais, uma religião não pode ser ensinada como a correta; até pode existir ensino religioso, mas ele não pode ser obrigatório. E mesmo que 60% do povo seja contra o aborto, o Estado tem que garanti-lo nos casos legalmente previstos (como no caso de uma gravidez resultante de um estupro, por exemplo) protegendo todos os envolvidos no procedimento.


Assim, não é constitucional que o Estado, ou seus representantes, defenda que Deus esteja acima de todos. Em um estado democrático só a lei está acima de todos. Claro que há, no mundo, Estados que seguem uma religião – chamam-se teocracias, tais como o Irã e o Afeganistão. Neles há todo um outro modo de ver o mundo, modo que não é incoerente... apenas não é o que adotamos. E nem devemos. ( 1 )


 

( 1 ) As questões que trato nesse texto são típicas do direito constitucional e da ciência política. Assim sendo, podem estar sujeitas a preferências políticas do seu autor. Para guiar o leitor, adotarei um Índice de Preferência Politica (IPP) que é, na verdade, uma brincadeira. Com ele, porém, tento indicar o grau de juridicidade do texto, de 0 a 10. Um IPP próximo de zero indica que as ideias são unânimes, ou quase, na doutrina constitucionalista. Um texto com IPP tendente a dez contém muitas opiniões políticas. O IPP para este texto é de 0,5. E só não é zero pela última frase.



*Doutor em Direito. Professor de Direito Constitucional. Pesquisador ligado ao CERCOP (Centre d’Études et de Recherches Comparatives Constitutionnelles et Politiques) da Universidade de Montpellier, França.

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